sábado, 4 de abril de 2009

EVANGELHO

Os primeiros cristãos, da chamada “igreja primitiva”, que brota no solo fértil do Pentecoste, promovem um dos mais inusitados e belos espetáculos já testemunhados pelo sol: a comunidade. A multidão de egos absolutos que se acotovela, cada um buscando seu próprio bem estar, conforto e satisfação de necessidades e desejos pessoais, de repente começam a enxergar a si mesmos na face dos demais e encarnam a máxima proposta do Evangelho de Jesus: o amor ao outro, obedecendo o mandamento de Jesus, conforme interpretado por Levinás: ame ao seu próximo, porque ele é você. Na verdade, vão além, pois morrem para si mesmos e amam com o amor de Cristo, uma vez que em seu doar do seu e de si para o próximo feito irmão experimentam a comunhão com o Cristo ressurreto.
A maneira como transformam sua utopia (nenhum necessitado no meio de nós) em projeto é por meio da radical partilha dos bens. Espontânea e livremente vendiam suas propriedades e colocavam o produto da venda aos pés dos apóstolos, que, por sua vez, repartiam com a comunidade, de onde surge o ideal: cada um contribui conforme suas possibilidades, cada um recebe conforme suas necessidades. Desaparece naquela primeira comunidade cristã o espírito de propriedade privada, pois embora cada um tivesse bens em seu poder, ninguém considerava sua qualquer coisa que possuísse. Na comunidade cristã nem todo mundo tem necessariamente igual, mas ninguém tem faltando. Os primeiros cristãos abriram mão de ter em favor da comunhão.
Mas conforme profetizado por Ágabo, a fome chegou às regiões da Judéia e os cristãos em Jerusalém começaram a passar necessidades. Foi então que se deram conta de que haviam repartido não apenas os ovos, mas também a galinha. Motivados pela crença na iminente volta de Cristo, que haveria de descer surgindo entre as nuvens assim como fora visto subindo aos céus, os primeiros cristãos pararam de trabalhar e produzir e se dedicaram a desfrutar o que haviam acumulado. Motivados pela fraternidade amorosa, que considera o outro uma extensão de si mesmo, tornaram-se companheiros e, diante da fartura de pão, não se ocuparam em buscar mais pão para a mesa da comunhão. Deve ter sido doloroso perceber que a fome que assola a terra chegara primeiro que o Cristo esperado desde os céus.
Isso explica em parte por que o apóstolo Paulo solicita aos cristãos da Ásia que façam coletas para ajudar os cristãos da Judéia. Agora o projeto que concretizava a utopia era outro. Não mais a venda de propriedades e abandono da arena de trabalho, produção e intercâmbio de recursos na sociedade, mas a partilha da riqueza conquistada nas transações no mercado.
A experiência dos primeiros cristãos nos ensina que somos chamados a viver seu espírito e sua utopia, mas não necessariamente seu projeto histórico. A comunidade cristã continua se sustentando no espírito da comunhão e da partilha solidária, a utopia cristã continua sendo a não existência de necessitado algum, mas de ninguém se exige que necessariamente venda suas propriedades, abandone o business e a atividade profissional. Quem sabe, exatamente o oposto: para fazer valer a utopia e viver de acordo com o espírito do evangelho, talvez devamos acatar os conselhos de Viv Grig: ganhe muito, consuma pouco, não acumule nada, doe generosamente e durma tranquilo.
Ed René Kivitz

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