terça-feira, 13 de abril de 2010

OS TEIMOSOS SOLDADINHOS DE CHUMBO

O Filho de Deus se fez homem para que os homens pudessem tornar-se filhos de Deus. Não sabemos - eu, pelo menos, não sei — como as coisas seriam se a raça humana nunca tivesse se rebelado contra Deus e se alia­do ao inimigo. Talvez todos os homens vivessem "em Cristo", compartilhassem desde o nascimento a vida do Filho de Deus. Talvez a vida que chamamos de bíos, a vida natural, tivesse sido assumida e incorporada a zoé, a vida incriada, de imediato e de uma vez por todas. Mas isso não passa de um palpite. O que nos interessa é a situação tal como se apresenta para nós agora.

O atual estado de coisas é o seguinte: os dois tipos de vida são não apenas completamente diferentes entre si (o que sempre foram e sempre serão), mas também opostos. A vida natural de cada um de nós é uma coisa egocêntrica, que quer ser paparicada e admirada, quer tirar vantagem das outras vidas e usar para seu proveito o universo inteiro. Acima de tudo, ela quer ser deixada em paz: quer distância de tudo que possa ser melhor, mais forte ou mais elevado que ela, tudo que possa re­velar a sua pequenez. Tem medo da luz e do ar fresco do mundo espiritual, da mesma forma que as pessoas que foram criadas sem higiene não gostam de tomar banho. Num sentido, ela tem toda a razão, pois sabe que, se cair nas garras da vida espiritual, seu egocentrismo e sua vontade própria serão exterminados. Assim, luta com unhas e dentes para que isso não aconteça.

Você nunca imaginou, quando era pequeno, como seria divertido se seus brinquedos ganhassem vida? Bem, imagine que você tivesse efetivamente o poder de dar-lhes vida. Imagine que pudesse transformar um soldadi­nho de chumbo num homenzinho de verdade. O chum­bo teria de transformar-se em carne. Imagine que o sol­dadinho não gostasse da mudança. A carne não o inte­ressa; tudo o que ele vê é o chumbo arruinado. Pensa que você quer matá-lo e fará tudo o que puder para im­pedi-lo. Se isso estiver ao seu alcance, não se deixará trans­formar em homem de jeito nenhum.

O que você faria com esse soldadinho eu não sei, mas o que Deus fez com o gênero humano foi o seguinte: a Segunda Pessoa de Deus, o Filho, tornou-se ele mes­mo um homem: nasceu em nosso mundo como um homem — uma pessoa real, que falava determinada lín­gua, tinha determinada altura, determinado peso e uma certa cor de cabelo. O Ser Eterno, que tudo sabe e criou todo o universo, tornou-se não apenas um homem, mas (antes disso) um bebê e, antes disso ainda, um feto dentro do corpo de uma mulher. Se quer saber como ele deve ter se sentido, imagine se você se transformas­se numa lesma ou num caranguejo.

Como resultado, houve um homem que foi de fato como todos os seres humanos deveriam ser: um ho­mem cuja vida criada, herdada de sua mãe, deixou-se as­similar completa e perfeitamente pela vida gerada. Nele, a criatura humana natural foi plenamente assumida pelo divino Filho. Assim, num caso particular, a huma­nidade chegou, por assim dizer, aonde tinha de chegar: passou à vida de Cristo. E, uma vez que toda a nossa di­ficuldade reside no fato de que, em certo sentido, a vida natural tem de ser "morta", ele escolheu um caminho terreno marcado pela morte cotidiana de todos os seus desejos humanos — escolheu a pobreza, a incompreen­são de sua própria família, a traição de um de seus ami­gos íntimos, a zombaria e o espancamento nas mãos da polícia e a execução mediante tortura. E então, depois de ser morta - morta, de certa maneira, a cada dia -, a criatura humana que nele havia, por ser unida ao divi­no Filho, voltou de novo à vida. O homem em Cristo ressuscitou: não apenas o Deus. Tudo se resume a isto. Pela primeira vez vimos um homem de verdade. Um sol­dadinho de brinquedo - feito de chumbo como todos os outros - se tornou esplêndida e totalmente vivo.

E aqui, como seria de esperar, chegamos ao ponto em que minha analogia fica imperfeita. Se um soldadi­nho ou uma estátua ganhasse vida, isso não faria grande diferença para o resto dos soldadinhos ou das estátuas, pois uns estão separados dos outros. Os seres humanos, no entanto, não são assim. Parecem separados porque andam todos por aí, cada um para seu lado. O proble­ma é que somos constituídos de tal modo que só conse­guimos ver o momento presente. Se pudéssemos enxer­gar o passado, tudo teria para nós uma aparência muito diferente, porque houve um tempo em que todo homem fazia parte da sua mãe e (num passado ainda mais dis­tante) de seu pai; e um outro tempo em que estes faziam parte dos avós. Se pudéssemos enxergar a humanidade no decorrer do tempo, como Deus a vê, ela não nos pa­receria um pontilhado de muitos entes distintos, mas sim uma única coisa viva, que não pára de crescer - como uma frondosa árvore. Cada indivíduo afigurar-se-ia li­gado a todos os outros. E mais: assim como estão todos ligados uns aos outros, estão todos ligados a Deus. Agora mesmo, neste exato momento, todos os homens, mulhe­res e crianças do mundo inteiro só respiram e sentem por­que Deus, por assim dizer, os "mantém funcionando".

Logo, quando o Cristo se torna homem, não é o mesmo que se você se tornasse um determinado solda­dinho de chumbo. E como se algo que sempre afetou toda a massa da humanidade passasse, num determinado ponto, a afetá-la de maneira nova. A partir desse pon­to, o efeito se espalha por todo o gênero humano. Afe­ta não só as pessoas que viveram depois de Cristo, mas também as que viveram antes dele; afeta inclusive as que nunca ouviram falar dele. E como pingar num copo d'água uma gota de uma substância que desse novo sa­bor e nova cor a todo o líquido. Porém, é claro que ne­nhum desses exemplos ilustra a realidade de forma per­feita. No fim das contas, só Deus é igual a ele mesmo, e o que ele faz não se assemelha a nenhuma outra coisa. Nem seria de esperar que se assemelhasse.

De que modo, então, ele afetou toda a massa da hu­manidade? Da seguinte maneira: toda a tarefa de nos tornarmos filhos de Deus, de transformarmo-nos de se­res criados em seres gerados, de passarmos de uma vida biológica provisória para uma vida "espiritual" eterna — toda essa tarefa já foi feita para nós. Deus se encarregou dela. A humanidade já foi "salva" em princípio. Nós, in­divíduos, temos de nos apropriar dessa salvação. Mas o trabalho pesado - que nunca conseguiríamos levar a cabo sozinhos - já foi feito. Não precisamos tentar esca­lar a vida espiritual pela nossa própria força, pois ela já desceu sobre a raça humana. Se simplesmente nos abrir­mos ao Homem que a possuiu em sua plenitude, Ho­mem que, apesar de ser Deus, também é verdadeira­mente humano, ele a fará funcionar em nós e por nós. Lembre-se do que eu disse sobre a "boa infecção". Um Ser da nossa raça já foi infectado por essa nova vida; se nos aproximarmos dele, seremos infectados também.

Não há dúvida de que podemos expressar essa ver­dade de diversas maneiras. Podemos dizer que Cristo morreu por nossos pecados. Podemos dizer que o Pai nos perdoou porque Cristo fez por nós o que devería­mos ter feito por conta própria. Podemos dizer que fo­mos banhados no sangue do Cordeiro. Ou, ainda, que Cristo venceu a morte. Tudo isso é verdade. Se alguma dessas formulações não lhe agrada, deixe-a de lado e adote a que mais lhe agradar. E, qualquer que seja a esco­lhida, não comece a discutir com as pessoas pelo sim­ples fato de usarem fórmulas diferentes da sua.

C. S. LEWIS - No Livro Cristianismo puro e simples. - Página 64

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